Os vizinhos concentrarão neste domingo (27/10) todas as atenções na Argentina. Se depender das projeções políticas, o peronismo de Alberto Fernández e Cristina Fernández de Kirchner garantirá em primeiro turno a principal cadeira da Casa Rosada. Uma vitória da chapa Frente de Todos representaria a ruptura da direita e o fracasso do presidente Mauricio Macri, que pode perder com mais de 20 pontos percentuais de diferença.

No contexto externo, significaria uma importante mudança no tabuleiro geopolítico da América Latina. O retorno da esquerda ao poder na segunda nação mais rica da América do Sul e a 28ª do planeta também traria suspense em torno das relações entre Fernández e Jair Bolsonaro, além de dúvidas sobre o futuro da Argentina no Grupo de Lima e no Mercosul.

Os intermináveis discursos populistas de Cristina Kirchner ou a inflação mensal de 5% de Mauricio Macri. A expansão no gasto público promovida por ela ou aumento da pobreza registrado sob o governo dele. Em uma campanha em que argentinos não identificados com nenhum dos lados se viram levados a escolher o legado menos negativo, o advogado Alberto Fernández parece ter convencido até a parcela que rejeita Cristina a colocá-lo na presidência.

Sem nunca ter sido eleito para um cargo no Executivo, mas também sem histórico de submissão, Fernández foi escolhido em maio por Cristina para encabeçar a chapa presidencial peronista. Ele havia sido chefe de gabinete de Néstor Kirchner e da própria Cristina, com quem se desentendeu em 2008.

Em agosto, nas primárias que servem como simulado da eleição, o professor universitário de 60 anos surpreendeu ao abrir 16 pontos de vantagem sobre Macri. Uma diferença suficiente para vencer no primeiro turno. Na Argentina, ganha que obtiver 50% dos votos ou mais de 40% com 10 pontos de vantagem sobre o segundo colocado.

Levando-se em conta que Cristina historicamente tem o apoio fiel de cerca de 30% eleitorado, o fato de Fernández ter obtido 47% nas primárias indica uma parcela expressiva de votos que vão além da figura dela. Pesquisas recentes sugerem até uma ampliação da vantagem de 16 pontos sobre Macri.

Predomina entre os analistas, mesmo entre os mais críticos ao kirchnerismo, a opinião de que Fernández exercerá o poder se vencer. “Será um governo em que ele comandará, pois o presidencialismo é muito forte na Argentina. Mas o segredo dessa chapa é ter conseguido reagrupar o peronismo. Os governadores terão um papel fundamental, e Cristina também terá o seu”, avalia o analista político Sergio Berensztein. Os governadores têm forte influência sobre o voto dos senadores argentinos, o que em geral é usado para aprovar projetos em troca de liberação de recursos.

Para Berensztein, o cálculo político de Cristina levou em conta também o resultado de eleições regionais em que ela apoiou candidatos radicais e perdeu, casos das províncias de Neuquén e Mendoza. “Ela viu que essa estratégia não daria certo. Não escolheu Alberto apesar de ele ter um estilo diferente do dela. O escolheu justamente por ser diferente, apresentar-se como moderado.”

Acuada por denúncias de corrupção desde que deixou a presidência, Cristina tratou de manter uma vaga no Senado. O posto lhe dá imunidade parlamentar. Pesquisa das consultoras D’Alessio e Berensztein diz que 7 em cada 10 peronistas acreditam que Fernández mandará caso vença. Entre os macristas, a proporção é oposta.

“Esta é a eleição do menos pior, Alberto Fernández. Cristina roubou muito dinheiro e grande parte não votaria nela. Mas com Macri, agora, colamos uma foto de churrasco na parede e comemos polenta imaginando que estamos mastigando carne”, desabafa o vendedor ambulante Román López, de 60 anos. Demonstrando certa raiva, ele afirma que o pior legado de Cristina no poder, entre 2008 e 2015, foi a concessão indiscriminada de benefícios sociais que fizeram o argentino “perder a cultura do trabalho”.

Seja por estratégia ou contingência familiar, Cristina manteve-se discreta durante a campanha, considerando-se seu padrão expansivo de comportamento.

Sem correr riscos, Fernández comandou a campanha, cuja estratégia foi culpar Macri pelo desemprego de 10,6% e a pobreza de 35,4%. “Ele tentou não fazer nada que prejudicasse sua imagem”, diz a analista política Mariel Fornoni. Macri dedicou-se a percorrer o país entoando seu lema “Sí, se puede”, que será colocado à prova hoje.

Família troca recoleta por favela

A confeiteira Mariela Ayala costuma convidar as ex-vizinhas para conhecer sua nova casa, mas nem sinal delas.

É que a aristocrática Recoleta e a popular Villa 31, onde ela agora vive, têm indicadores e estilos de vida antagônicos, ainda que estejam separadas por apenas uma avenida e uma linha de trens.

A taxa de homicídios, por exemplo, é 11,3 vezes mais alta. São 6,7 mortos a cada 100 mil habitantes em toda Buenos Aires, ante 76 na favela, diz o Ministério da Segurança.

A crise aumentou a pobreza e afetou diretamente a qualidade de vida da classe média, extrato social mais emblemático do país. Famílias tiraram filhos da escola particular, renegociaram planos de saúde e buscaram aluguéis mais baixos, mas o caso de Mariela, de 46 anos, tem um simbolismo extremo.

Depois de perder o emprego na Recoleta, ela deixou de ter garantias exigidas para um aluguel. Ficou sem cartão de crédito e comprovante de renda. Recorreu à Villa 31, onde tais formalidades são dispensáveis e a localização é praticamente a mesma. Um quarto como o alugado na favela pelo Estado nesta cobertura eleitoral, dedicada a mostrar como parte da classe média mudou seu padrão, custa 5 mil pesos (R$ 350).

Mariela trocou o ambiente de palacetes pelo de casebres depois de enviuvar pela segunda vez, aos 38 anos (a primeira viuvez veio aos 28). Chegou há quatro meses a esta favela plana, distribuída em uma área equivalente a 32 campos de futebol. Diz não ter vergonha de agora ser um dos 40 mil habitantes.

“Muita gente nessa situação teria entrado em depressão, ido morar na rua. Nem todo mundo conseguiria superar. Levanto às 8h para trabalhar e às vezes durmo de madrugada. Acho que é um exemplo para os meus filhos, para eles saberem dar valor ao que têm e não se acomodarem”, pondera.

Sem o oportunidade com carteira assinada, ela decidiu fazer tortas – principalmente para aniversários, Páscoa e Natal – e vendê-las pela internet. Assim, não paga impostos e tem uma renda 50 mil pesos (R$ 3,3 mil), o que a coloca com folga dentro da classe média.

Ao chegar à Villa 31, Mariela passou a pagar 18 mil pesos (R$ 1,2 mil) de aluguel por uma casa com três ambientes. Ela dorme no quarto com dois dos seus três filhos. Agora, está se mudando para um apartamento menor, mas mais novo, a duas quadras. Vai pagar 12 mil pesos (R$ 800).

O gasto total em um apartamento de duas peças hoje na Recoleta, para onde ela quer voltar, seria de 50 mil pesos (R$ 3,3 mil). “O aluguel não é muito mais caro, o problema na Recoleta é pagar condomínio, a luz, o gás e a água”, afirma. Na favela, os serviços que não são “contrabandeados” são subsidiados.

Dos dois anos em que viveu na Recoleta, Mariela tem saudade principalmente de não se preocupar com a segurança dos filhos, que continuam frequentando a mesma escola pública no bairro nobre bonaerense. “Iam sozinhos ao catecismo, à natação”, lembra. Na favela, eles saem somente acompanhados dos amigos.

Na sexta-feira, 25, Manuela observava seu filho do meio, Franco, tirar rugas de uma camisa em uma tábua de passar roupas. “Ele vai hoje para a primeira entrevista de emprego, no McDonald’s”, disse a confeiteira, com um orgulho que despertou certo constrangimento no filho, de 17 anos.

“Não acho que faça tanta diferença morar aqui ou na Recoleta. Já estamos acostumados com o ambiente”, diz. Sua irmã, Victoria, tem opinião semelhante. “Temos nossos amigos aqui, não faço questão de me mudar. Nem de ter um quarto só para mim”, diz a jovem de 15 anos.

Mariela sente falta de serviços básicos. “Aqui não chega o correio, não posso pedir comida, não entra táxi ou ambulância”, lamenta. Por isso, ela não recrimina as amigas que ignoraram seus convites. “Eu também tinha medo daqui antes de me mudar”, admite. “A clientela aqui na favela é muito melhor. Na Recoleta, o pessoal pede desconto, pechincha e pede mais prazos para pagar. Teria que manter minha clientela aqui.”

Macri, o empresário liberal atropelado pela crise

Filho da elite empresarial, Mauricio Macri foi executivo do Citibank e presidente do Boca Juniors, entre 1995 e 2007, período de maior sucesso da equipe. Essa experiência serviu de trampolim para a carreira política, que começou como prefeito de Buenos Aires (2007-2015).

Foi eleito presidente da Argentina em 2015 como esperança do liberalismo em uma região marcada pelo populismo. Quatro anos depois, ele reconhece que suas medidas de austeridade foram duras, mas garante que o pior já passou e pede uma nova chance.

Engenheiro de 60 anos, Macri estudou nas melhores escolas e universidades. Entre seus colegas de classe, vários se tornaram seus ministros. Graduou-se na Universidade Católica e se especializou em Columbia, em Nova York. Sua carreira foi feita na empresa familiar, uma construtora. Com pinta de galã, Macri sempre esteve acompanhado de belas mulheres. Seus opositores o acusam de viver fora da realidade e de ser insensível às dificuldades da população.

As conexões familiares facilitaram seu bom relacionamento com o presidente americano, Donald Trump, que ele conheceu anos atrás em razão dos negócios de seu pai, Franco Macri.

Fernández, o peronista mais próximo da presidência

De baixo perfil e há anos afastado da política, Alberto Fernández se tornou a surpresa da campanha eleitoral da Argentina. Peronista moderado e pragmático, está prestes a chegar à presidência, impulsionado pela ex-presidente e companheira de chapa, Cristina Kirchner, e depois de obter 47% dos votos nas primárias de agosto.

Um resultado surpreendente para um advogado de 60 anos que disputou uma eleição popular apenas uma vez, em 2000, nas legislativas da cidade de Buenos Aires.

Seu maior destaque foi como chefe de gabinete de Néstor Kirchner (que governou entre 2003-2007 e morreu em 2010), assim como de Cristina, em 2008. Rompeu com sua agora vice ao fim do primeiro ano de mandato dela, com declarações duras, em meio ao embate da então presidente com os proprietários rurais e com os grandes meios de comunicação. Hoje, esse episódio surge como um argumento de demonstração da independência de Fernández, contra aqueles que o acusam de ser uma marionete de Cristina.

Seus críticos o consideram camaleônico por ter acompanhado setores ultraliberais, como o de Domingo Cavallo, e populistas de esquerda, como o casal Kirchner.

Com as informações do jornal O Estado de S. Paulo.

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