É um fenômeno nacional que se apresenta quatro vezes maior que o número recomendado. O país vive a “cultura do remédio” em tempos modernos.
Quem transita pelas principais vias da Capital Nacional do Alimento fica com a sensação de que há uma farmácia em cada esquina. E é quase isso. Em menos de quatro quadras, a Avenida Sampaio Vidal, no centro de Marília, tem 08 desses estabelecimentos – uma média de um a cada 50 metros. O ápice da overdose é um trecho de 100 metros, na Avenida João Ramalho, onde estão concentradas quatro lojas. Uma ao lado da outra.
Como característica, há no segmento uma preferência pelos pontos de esquina. É o fenômeno das cornershops, uma estratégia para ter maior visibilidade e atrair os consumidores que ziguezagueiam em busca de ofertas e descontos. Nessa disputa, entram também as garrafas de chá e café, as cadeiras de espera, estacionamento e até brinquedoteca.
Com 117 farmácias e drogarias extra oficialmente, Marília tem um estabelecimento para cada 2,1 mil habitantes. Em dezembro de 2016 o numero era de 95 farmácias, ou seja, um aumento de 23,5% ( 22 estabelecimentos ) com a geração de no mínimo 100 empregos diretos. Os numero não são exatos, pois a Secretaria do Trabalho, Turismo e Desenvolvimento Econômico alegou não possuir as informações.
O que podemos detectar é que, a grande dificuldade está no registro do estabelecimento que pode variar de Farmácia e drogaria para comércio de medicamentos ou no nome da pessoa. Curiosamente, Há, na cidade de Marília, mais lojas que vendem remédios do que cafeterias. Sinal de tempos “hipocondríacos e narcísicos”.
A indústria farmacêutica tem o diagnóstico na ponta da língua: o crescimento da classe média, o aumento da expectativa de vida, a diversificação do negócio e o melhor acesso a diagnósticos e tratamentos seriam algumas das causas da expansão.
– O aumento da quantidade de farmácias é reflexo da demanda por qualidade de vida, de estar bem consigo mesmo. É uma demanda dos tempos modernos e, além disso, o Brasil está envelhecendo –, avalia o presidente da Associação Brasileira das Redes de Farmácias e Drogarias (Abrafarma), Sérgio Mena Barreto.
Há, no entanto, quem considere o boom de estabelecimentos farmacêuticos sintoma do descontrole de uma complexa engrenagem envolvendo laboratórios, médicos e pacientes e que leva ao excesso de medicalização da vida.
Autor do livro Voltando ao Normal (Versal Editores, lançado no Brasil em 2016), o renomado psiquiatra norte- americano Allen Frances, afirma que milhões de pessoas saudáveis – incluindo crianças – estão tomando remédios sem necessidade. Ao contrário do que muitos pensam, a culpa, segundo ele, não é do nosso atual ritmo alucinante de vida, mas da “inflação diagnóstica” induzida pelos fabricantes de pílulas.
– A vida sempre foi difícil. O crescimento de transtornos mentais não ocorre porque a vida está mais estressante ou porque estamos adoecendo mais. Está relacionado com o interesse comercial dos laboratórios, o desorganizado sistema médico e alguns critérios de diagnóstico mais frouxos – Avaliou o Frances, em recente entrevista.
Na avaliação da psicóloga Helivalda Pedroza Bastos, a dependência de pílulas foi gerada, ao longo dos anos, a partir de ações deliberadas dos laboratórios para disseminar a “cultura do remédio”. A pesquisadora da Universidade de São Paulo (USP) diz que as pessoas passaram a confiar mais nos comprimidos do que na própria resiliência.
Uma das consequências seria o uso abusivo de medicamentos, como a Ritalina, utilizada no tratamento do transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), sobretudo em crianças e adolescentes. Em 10 anos, o consumo do medicamento saltou 775% no país.
Pesquisador da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), o médico Flavio Danni Fuchs, autor do livro Farmacologia Clínica e Terapêutica, afirma que o ser humano é movido pelo “instinto de cura”. Em busca de alívio, lota as farmácias, que são vistas como uma espécie de “paraíso”, onde há solução para quase tudo:
– As pessoas são suscetíveis a imaginar que os remédios são mais eficazes do que realmente são. Muitas coisas têm uma resposta independentemente do tratamento. É o famoso efeito placebo. Por isso, costumo dizer para meus pacientes: não faça nem da doença nem do remédio o centro da sua vida.
O fato do notável aumento não é uma exclusividade de Marília, pois em outras cidades, principalmente nos grandes centros, já a alguma tempo se registra o chamado “excesso de farmácias”. E a proporção, quando se compara com a população, “é muito acima do que seria necessário para fomentar o uso racional de medicamentos”. Uma das justificativas é a de que “é relativamente fácil” abrir uma farmácia no Brasil, bastando atender a algumas “questões sanitárias e comerciais”.
Pelo que constatamos, leis de zoneamento urbano, estabelecendo distância mínima entre as lojas, poderiam evitar a alta concentração que estimula a automedicação. Houve, recentemente, a tentativa de incluir essa exigência em uma legislação federal, mas não vingou. Entidades como a Associação Brasileira de Redes de Farmácias e Drogarias (Abrafarma) argumentam que a medida fere princípios constitucionais como os da “livre iniciativa, da livre concorrência e do livre exercício de qualquer atividade econômica”.
O modelo de negócio inspirado nas drugstores norte-americanas é alvo de críticas. O médico José Ruben Bonfim, coordenador da Sociedade Brasileira de Vigilância de Medicamentos (Sobravime), defende que as farmácias e drogarias deixem de ser estabelecimentos comerciais, que também vendem produtos de higiene e beleza, e sejam apenas estabelecimentos de saúde.
É o que determina a Lei 13.021, sancionada em 2014, mas ainda pendente de regularização. Membro do Fórum Sobre Medicalização da Educação e da Sociedade, Bonfim considera fundamental o fim do enquadramento de medicamentos como isentos de prescrição médica. Essa distinção, segundo ele, “só interessa ao mercado” e leva as pessoas a acreditarem que os produtos com essa classificação não causam danos à saúde.
– É um problema muito sério. Você entra numa farmácia e é só estender a mão e sair enchendo uma sacola de venenos. Um remédio, mesmo autorizado pela Anvisa, pode ser um veneno. Não tem cabimento se vender anti-inflamatórios do jeito que se vende no país. Muito tardiamente passamos a controlar os antibióticos. As tragédias que estamos vivendo são tragédias ocultas.
Autora do livro Tarja Preta, a jornalista Marcia Kedouk lembra que “medicamentos salvam e prolongam vidas e não faz sentido ser contra eles”:
– A questão é o excesso. Muitos dos nossos males não são tratáveis com comprimidos e a medicalização cria uma ditadura da felicidade. Todo mundo precisa estar sempre bem e feliz. Acontece que sentimos dor e tristeza, ansiedade, medo e desânimo. Faz parte da natureza humana e nem sempre requer um remédio.
CONFIRA ABAIXO O ULTIMO BALANÇO REALIZADO PELO CONSELHO FEDERAL DE FARMÁCIA SOBRE A QUANTIDADE DE ESTABELECIMENTOS NO FINAL DO ANO DE 2018 EM NOSSO PAÍS
DESCRIÇÃO | NÚMERO TOTAL REGISTRADO |
Farmacêuticos inscritos nos conselhos regionais de Farmácia | 221.258 |
Cursos de graduação em Farmácia no Brasil | 637 |
Farmácias e drogarias privadas | 87.794 |
Farmácias com manipulação e homeopatia(*) | 8.373 |
Farmácias hospitalares | 6.934 |
Farmácia pública | 11.251 |
Laboratórios de análises clínicas | 9.718 |
Indústrias farmacêuticas | 450 |
Distribuidoras de medicamentos | 4.436 |
Importadoras de medicamentos | 59 |