Lei de Cotas incluiu mais negros e negras no ensino superior. Pesquisa do Sebrae mostra liderança no empreendedorismo Brasil afora

Nos últimos sete anos, o crescimento de 118% no número de estudantes pretos e pardos no ensino superior brasileiro, via Lei de Cotas, que completou 10 anos em agosto, é um dos resultados mais positivos das políticas de ações afirmativas implementadas no país nos últimos anos na tentativa de reduzir as desigualdades históricas entre negros e não negros. E não é apenas nas universidades que essa lacuna está diminuindo: no empreendedorismo também. A pesquisa Potência Negra, elaborada pela Feira Preta e pelo Instituto Locomotiva Brasil, mostra que 9 em 10 pessoas pretas e pardas no país têm interesse em empreender. 

Entre homens negros, o percentual é de 83%, chegando a 88% entre as mulheres negras. E essa potência latente não fica apenas no campo do sonho e do desejo: o levantamento “Empreendedorismo por raça-cor/gênero no Brasil” (2021) feito pelo Sebrae no segundo trimestre de 2021 mostra que há 28,6 milhões de empreendedores no Brasil, sendo os negros a maioria. Juntos, homens e mulheres pretos e pardos são os maiores “donos de negócios” no país, com 14,54 milhões de pessoas, o que representa 50,8% do total; estão à frente de homens e mulheres brancos, que somam 13,68 milhões, ou 47,8%. 

Outro cenário relevante é a inclusão de pessoas pretas e pardas no mundo da tecnologia. Para o cientista político Wesley Matheus, coordenador do Núcleo de Dados do Afro Cebrap – Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, e chefe de Dados da Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social de Minas Gerais (Sedese), este é um desafio e tanto, pois há sinais de que o mercado de trabalho, até 2030, deverá ter um percentual de 50% das vagas no formato digital. “Daí vem o questionamento de como reposicionar o público negro nesse cenário produtivo, como fazer girar a dinâmica econômica e levar os coletivos a pensar nisso. Este é um desafio”, comenta.

Com o objetivo de criar ambientes mais inclusivos, plurais e equânimes nesse mercado, foi realizada no início do mês, em São Paulo, e em alusão ao Dia da Consciência Negra, a segunda edição do Potências Negras Tec, evento com uma grade repleta de painéis, entrevistas e atrações culturais, tudo ligado ao universo tecnológico: data analytics, programação, inteligência artificial, metaverso e marketing digital. “Acredito que a tecnologia é muito importante para a emancipação da população negra. Quando a gente olha para o futuro e vê que, em poucos anos, 50% das profissões deixarão de existir, sabemos também que a população negra vai ficar desempregada, à margem da desigualdade racial. Queremos um mercado equânime, e o nosso evento mostrou que é possível”, destaca Ana Minuto, cofundadora do Potências Negras.

Resistência de cinco séculos

Diante de algumas conquistas, mas ainda com tantos desafios pela frente, impossível não conectar os movimentos de resistência negra que perduram há mais de cinco séculos no Brasil – dos primeiros quilombos, que lutavam contra a exploração dos escravos africanos, aos novos coletivos de negros e negras, que ganham força nas grandes cidades. Com atuações diversas, na área da cultura, ativismo social, direitos humanos, moradia, política e empreendedorismo, os coletivos têm se mostrado plurais. 

Conforme a professora do Departamento de História da Universidade do Estado do Piauí e presidente da Associação de Pesquisadores e Pesquisadoras Negros e Negras do Brasil (APNB), Iraneide Soares da Silva, os movimentos atuais são fruto de todo um contexto histórico que começou no período colonial. “Quando falamos desses movimentos, eles vêm de um processo longo e se apropriam das novas linguagens e espaços, sobretudo a internet. Nos últimos 20 anos, conseguimos consolidar e publicizar uma agenda de luta, dialogar com os Estados e consolidar políticas extremamente importantes, como o Estatuto da Igualdade Racial, a Lei de Cotas, o ensino da história e da cultura afro-brasileira nas escolas”, explica.

Ações afirmativas

Para ela, há um conjunto de ações afirmativas que vão ao encontro de uma agenda reivindicatória do próprio movimento negro. Aliado a isso, os novos coletivos também agregam outras pautas, como as bandeiras de gênero e LGBTQIA+. “Assim como o Quilombo dos Palmares, em 1630, contava com a participação de outros sujeitos, como indígenas e pessoas pobres, os novos coletivos são extremamente abertos”, enfatiza Iraneide.

Na análise do cientista político Wesley Matheus, a força encampada pelo surgimento de coletivos em várias frentes temáticas nos últimos anos foi preponderante para que os grupos criassem um imaginário de que era possível ocupar espaços de poder e partissem para a prática. 

“Exemplo disso é o coletivo Juventude Negra na Política, nascido em Belo Horizonte, com forte atuação nesse cenário; o movimento cultural que lançou recentemente “Marte Um”, filme de baixo custo que mostra como os jovens negros sonham e passam por dificuldades, de forma sensível e potente. Fora da cena formal, temos o funk, o rap; temos Djonga, artista com extensa produção que posiciona a capital mineira no cenário nacional e internacional, mostrando todas as possibilidades que o jovem negro tem para falar do seu universo, do seu lugar de fala. Estas são as gramáticas mais potentes da atualidade, capazes de atravessar as várias camadas da sociedade e levar as mensagens de negros e negras para todos os locais possíveis”, analisa Matheus.

Movimentos inclusivos. Na visão do historiador Antônio Liberac, professor do Programa de Mestrado Profissional da História da África, da Diáspora e dos Povos Indígenas, da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), os coletivos atuais remanescem da ideia dos quilombos, que reúnem negros e negras em torno de ações e projetos de interesses específicos.

“O mais interessante que vejo é que os coletivos atuam em determinados territórios, com temáticas específicas, demarcando uma presença política, e, em linhas gerais, todos têm foco no combate ao racismo. Seja na pauta LGBTQIA+, seja na pauta da cultura ou das religiões de matrizes africanas, um elemento importante a ser assinalado é que os coletivos são muito inclusivos, sempre marcados também pela presença de pessoas não negras, de outras cores, que são sempre bem-vindas”, assinala. (Colaborou Lucas Morais)

Afinal, como surgiram os coletivos?

Coletivo não é um nome novo para as atuais formas de organização de lutas sociais. De acordo com os sociólogos e pesquisadores Antônio Sérgio Guimarães (Universidade de São Paulo), Flávia Rios (Universidade Federal Fluminense) e Edilza Sotero (Universidade Federal da Bahia), o nome “coletivo” foi inspirado nos grupos organizados negros e feministas dos anos 1970 e 1980, que pregavam horizontalidade na tomada de decisões e ausência de hierarquia na organização, constituindo-se como grupos de discussão e de atuação política e intelectual em torno de um ideário libertário e emancipatório. 

“Os coletivos atuais são impulsionados por novo repertório de ação; pelo uso sistemático de redes sociais, como Facebook, Instagram, Twitter e WhatsApp,  recusando-se a serem chamados de ‘militantes’, preferindo intitular-se ‘ativistas’”, dizem os sociólogos no artigo “Coletivos negros e novas identidades raciais”, que integra o dossiê “Raça, Desigualdades e Políticas de Inclusão”, do Cebrap.

Jornadas de Junho. Segundo eles, “as novas gerações ativistas têm articulado de forma mais sistemática e intensa a relação entre gênero, raça e sexualidade, tanto em coletivos de periferia quanto em coletivos universitários ou mesmo em organizações mais antigas dos movimentos sociais”. O artigo indica ainda que os novos movimentos de coletivos surgiram da redemocratização brasileira, mas, especialmente, depois das Jornadas de Junho de 2013, quando tomaram esse novo formato, como forma de organizar politicamente estudantes negros e cotistas das universidades para acompanhar a implementação das políticas de ações afirmativas.

Esta foi a terceira e última parte desta série em que o JORNAL DO ÔNIBUS DE MARILIA dedicou ao Dia da Consciência Negra, data celebrada neste dia 20 de novembro. Para você leitor (a) que conseguiu acessar este rico conteúdo, pode constatar um mergulho no universo pouco divulgado pelos portais de noticia e mídias em geral. Se você gostou, curta, compartilhe e ajude o jornalismo independente a ajudar você.

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