Tema será julgado na sessão do Supremo desta quinta-feira, e decisão pode acarretar consequências jurídicas.

Os ministros Luís Roberto Barroso e Luiz Fux, do Supremo Tribunal Federal (STF), pararam hoje (16), antes da sessão plenária, para falar com jornalistas em defesa do cumprimento de pena após condenação em segunda instância da Justiça. O julgamento do tema está marcado para amanhã (17).

Para Barroso, uma mudança de entendimento para permitir a prisão somente após o fim de todos os recursos em instâncias superiores beneficiaria somente os criminosos de colarinho branco, sem surtir efeitos para os demais presos.

“Os que são criminosos violentos, em muitos casos se justificará a manutenção da prisão preventiva. Portanto, no fundo, no fundo, o que você vai favorecer são os criminosos de colarinho branco e os corruptos”, disse ele.

Já para Fux, representaria “realmente um retrocesso se essa jurisprudência for modificada”. Ele acrescentou que o cumprimento de pena após o segundo grau “segue os padrões internacionais”.

“Estamos adotando um precedente e temos de seguir essa regra. E estamos seguindo países como Estados Unidos, Canadá, França, Alemanha, Portugal, Espanha e demais países do mundo”, disse Fux.

“O direito hoje, dependendo das soluções que se adota, ele gera comportamentos na população. Se o direito é muito flexível, as pessoas tendem a não cumpri-lo. Se o direito é um pouco mais rígido as pessoas alimentam que o Estado está disposto a punir e pensam duas vezes antes de delinquir”, acrescentou Fux.

Barroso, por sua vez, lembrou que até 2009 o entendimento do Supremo foi sempre no sentido de permitir a execução de pena após a condenação em segunda instância, e que isso mudou entre 2009 e 2016 somente quando “o direito penal chegou ao andar de cima”, avaliou. 

Julgamento

Na segunda-feira (14), o presidente do STF, Dias Toffoli, marcou para a sessão de quinta ( 17 ) o julgamento de três Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADC´s), relatadas pelo ministro Marco Aurélio Mello, que tratam do assunto.

Toffoli marcou o julgamento com pouco tempo de antecedência alegando questões de segurança, uma vez que o tema atrai grande atenção por ter o potencial de afetar a situação de condenados na Lava Jato, incluindo o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

No ano passado, Toffoli havia marcado o julgamento das ações para 10 de abril, mas acabou retirando-as de pauta na semana anterior a pedido da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), autora de uma das ADC´s. Os autores das outras duas ações são os partidos PCdoB e o antigo PEN, atual Patriota.

A questão gira em torno de saber até onde vigora a presunção de inocência prevista na Constituição, se até a condenação em segunda instância ou se até o chamado trânsito em julgado, quando não cabem mais recursos sequer nos tribunais superiores, em Brasília. 

Controvérsia

O assunto é polêmico dentro do próprio Supremo, onde já foi levado ao menos quatro vezes a plenário desde 2016. Nesses julgamentos, prevaleceu o entendimento pela prisão em segunda instância, mas sempre em situações específicas ou provisórias, sem o estabelecimento de uma posição definitiva de mérito.      

Entre os ministros, Marco Aurélio, Ricardo Lewandowski e Celso de Mello se posicionam claramente contra o cumprimento de pena após a segunda instância, por considerarem que a presunção de inocência não pode ser relativizada, devendo-se aguardar assim todo o trânsito em julgado da sentença condenatória para que alguém possa ser considerado culpado. 

Na corrente contrária, ministros como Alexandre de Moraes, Luís Roberto Barroso, Luiz Fux, Cármen Lúcia e Edson Fachin, relator da Lava Jato no Supremo, posicionam-se a favor da prisão após segunda instância, por considerar que a presunção de inocência perdura somente até a segunda condenação, uma vez que dali em diante, nos tribunais superiores, não se volta a examinar provas, mas somente se analisa eventuais nulidades processuais. 

Ministros como Gilmar Mendes, Dias Toffoli e Rosa Weber mostraram-se, no passado, mais flexíveis, tendo votado em diferentes direções ao longo do tempo ou sugerido vias intermediárias, em que seria preciso aguardar, por exemplo, o julgamento da condenação no Superior Tribunal de Justiça (STJ), tida como terceira instância, para que um condenado pudesse começar a cumprir pena.

Países que influenciaram leis do Brasil adotam prisão após condenação em segunda instância.

As legislações dos países que influenciaram o sistema criminal brasileiro permitem as prisões de réus após condenações em segunda instância. Além disso, tratados internacionais sobre direitos humanos prescrevem que decisões de dois níveis da Justiça já são suficientes para assegurar o direito de defesa dos acusados, segundo especialistas ouvidos pela reportagem.

A orientação em vigor atualmente no Brasil está alinhada com a das nações que inspiraram nossas leis penais, uma vez que aqui as detenções também podem ser feitas depois das sentenças de segunda instância.

O Supremo Tribunal Federal ( STF ), porém, pode mudar o posicionamento em discussão que será retomada nesta quinta feira ( 17 ). A corte pode determinar que encarceramentos só ocorram após o esgotamento das possibilidades de recursos ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) e ao STF — que, na prática, funcionam como tribunais superiores de terceira e quarta instância.

No Brasil, somente de 2009 a 2016 vigorou o entendimento de que era necessário aguardar os julgamentos dos quatro níveis da Justiça do país para dar início ao cumprimento da pena de reclusão. Em julgamento de um habeas corpus em fevereiro de 2009, o STF examinou a regra constitucional que determina que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.

Na ocasião, para a maioria dos ministros do tribunal ocorreria uma violação ao direito de ampla defesa caso as prisões de condenados pudessem ocorrer antes do esgotamento da possibilidade de recorrer ao STJ e STF, sob a ótica do texto da Constituição. Porém, em novo julgamento sobre o tema em 2016, o tribunal voltou ao entendimento anterior. Na oportunidade, o argumento da maioria dos magistrados foi o de que a análise das provas e dos fatos dos casos só deve ocorrer nas duas primeiras instâncias da Justiça, e nelas é que se define a responsabilidade criminal dos acusados.

Os recursos aos tribunais superiores têm um campo de discussão muito mais restrito, relacionado à aplicação técnica das leis, e por isso não devem impedir a execução das penas, segundo a decisão do STF mais recente. Entre as décadas de 1940 e 1970, a lei brasileira determinava que, para crimes com pena máxima superior a 10 anos, a prisão poderia ocorrer já no momento da apresentação de denúncia criminal contra um suspeito.

Em 1973, durante o regime militar, o Congresso aprovou uma legislação que permitiu aos condenados aguardar em liberdade o julgamento do recurso à segunda instância. Ela ficou conhecida como “Lei Fleury”, pois foi aprovada pelo Congresso para beneficiar o delegado Sérgio Fleury, que comandou o DOPS, órgão responsável por tortura e repressão política na ditadura

As leis penais do Brasil tiveram inspiração nos sistemas criminais da Europa continental, principalmente de Itália, Alemanha e França, onde se desenvolveu a linha do direito conhecida como romano-germânica. Os especialistas ouvidos pela reportagem enfatizam que o Judiciário desses países têm uma estrutura diferente da brasileira e criticam comparações sem considerar essa realidade. No Brasil, a maioria dos processos criminais é decidida por um único juiz na primeira instância. Só as ações penais que envolvem crimes contra a vida são julgadas por um júri popular no primeiro grau.

Na segunda instância brasileira estão os Tribunais de Justiça, na esfera estadual, e os Tribunais Regionais Federais, no âmbito federal. Nessas cortes os julgamentos são realizados por grupos de juízes. Os réus no Brasil ainda podem recorrer ao STJ e ao STF, mas as apelações a esses tribunais superiores não impedem o cumprimento das penas.

Na Itália, a lei permite que os condenados sejam detidos após as decisões das chamadas cortes de apelação, tribunais que estão no segundo grau da Justiça do país europeu. Segundo o criminalista e professor de processo penal da USP Gustavo Henrique Badaró, no país há ainda a possibilidade de apresentar recurso a um outro órgão denominado corte de cassação, mas as apelações a esse tribunal não impedem a execução das penas restritivas de liberdade.

Na Alemanha, nos casos de crimes graves, a decisão de primeira instância não é resultado do julgamento de apenas um magistrado, mas de um colegiado formado por juízes e julgadores leigos, segundo o criminalista Mário Helton Jorge Jr., que é doutorando pela Universidade Humboldt, de Berlim. A exemplo da Itália, no país a prisão pode ocorrer após a sentença de segunda instância, afirma Jorge.

Pedro Estevam Serrano, advogado e professor de direito constitucional da PUC-SP, diz que em cada país há um sistema de direitos e garantias diferente. “Há aqueles nos quais um condenado pode ir para a prisão após decisão de segundo grau, mas em compensação ele passa por um número de juízes maior do que no Brasil. É o caso da Alemanha.”

Na França as detenções podem ser feitas já a partir dos julgamentos de primeira instância, que são realizados por grupos de juízes, segundo o criminalista Tracy Reinaldet, que concluiu um doutorado pela Université Toulouse 1 Capitole da França em 2017.

— Com três juízes analisando simultaneamente um caso, a tendência de se chegar a uma sentença mais justa e com menos erro judiciário é maior do que em um caso examinado por um único juiz. Isso é importante para entendermos porque o legislador na França possibilita que uma execução penal possa ter lugar logo após uma sentença de primeiro grau — afirma Reinaldet.

Na Justiça americana, as prisões podem ocorrer depois das sentenças de primeira instância, mas a estrutura do Judiciário é muito diferente do formato brasileiro. Nos EUA, em regra, o sistema de julgamentos é por decisão de júri popular.

— A população tem uma legitimidade constitucional pública de decisão muito grande, então a possibilidade de recorrer é muito menor nos EUA — diz o advogado e professor de processo penal da USP Maurício Zanoide de Moraes. O criminalista ressalta ainda que, naquele país, cerca de 95% dos casos criminais são resolvidos por meio de acordos homologados pela Justiça.

Segundo o procurador Regional da República e professor de direito internacional e comparado da USP André de Carvalho Ramos, os tribunais internacionais e em especial a Corte Interamericana de Direitos Humanos reconhecem que a adoção de sistemas judiciais com decisões de primeiro grau por um juiz e de segunda instância por um colegiado de magistrados é suficiente para garantir o direito à ampla defesa.

— Na discussão da execução da pena após a decisão de órgão colegiado tem que se debater os direitos individuais do acusado, mas tem que se debater também os direitos individuais da vítima e os direitos difusos da sociedade — afirma Ramos.

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