A escrivã da Polícia Civil Maria Fernanda Gonçalves de Oliveira, 38 anos, garantiu na 2ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás (TJGO) no inicio do mês de junho deste ano a redução da carga horária de trabalho, sem prejuízo no salário, para acompanhamento médico da filha autista. Antes de recorrer à justiça, ela solicitou à Secretaria da Administração o afastamento para cuidar da filha, porém o pedido foi negado por seu superior e, posteriormente, ratificado pela Secretaria da Administração.

O advogado Diêgo Vilela, que defendeu a recorrente, ressalta que a questão “envolve direito à vida e à saúde, além da própria dignidade da pessoa humana, garantidos constitucionalmente e pelas legislações infraconstitucionais em vigor”. Ainda segundo ele, “o conceito de necessidades especiais, que exigem atenção permanente, são situações de deficiências físicas ou mentais nas quais a presença do responsável seja fundamental na complementação do tratamento terapêutico ou na promoção de uma melhor integração do paciente na sociedade”.

O relator recorreu à lei estadual nº 20.756/2020: “Ao servidor que seja pessoa com deficiência, na forma da lei, e exija cuidados especiais ou tenha, sob seus cuidados, cônjuge, companheiro, filho ou dependente, nessa mesma condição, poderá ser concedida redução de jornada de trabalho para o equivalente a seis horas diárias, 30 semanais e 150 horas mensais”.

A suspeita da filha, Helena, ser portadora do Transtorno do Espectro Autista (TEA) surgiu durante uma consulta de rotina em janeiro de 2020, quando os pais foram alertados da possível condição neurológica da pequena. Foi adicionada a agenda de atendimentos médicos mais profissionais da saúde, e as consultas passaram a ser mais frequentes e a necessidade da presença da mãe também.

Em 2020, Maria Fernanda ocupava o posto de escrivã da Polícia Civil do Estado de Goiás na central de flagrantes, cargo no qual impossibilitava a ausência para acompanhar a filha, Helena, à época com três anos e meio, as consultas para detectar o diagnóstico de TEA. Hoje ela integra a equipe do grupo especializado em crimes patrimoniais.

No início, os superiores permitiam as saídas antes do horário para Maria Fernanda acompanhar a filha nas terapias, fonoaudiólogo, entre outros. Ela conta que eram cinco consultas por semana e, esse número, já estava reduzido para conseguir conciliar o trabalho e os cuidados com a Helena.

Entre as idas e vindas, a escrivã começou a ser questionada por colegas de trabalho. Frases como: “Você está inventando desculpas para não trabalhar”, “não esquenta a cabeça, a sua filha não tem nada”, “você está criando doença para sua filha”, “ela não tem cara de autista”, eram ouvidas por Maria Fernanda.

Mesmo que existissem pessoas preocupadas e com vontade de ajudar, o desconhecimento sobre o TEA conseguiu erguer barreiras intransponíveis o que dificultou ainda mais o processo de compreensão da situação. “Um autista não é igual ao outro. Eles são singulares, não dá para generalizar. A minha filha pode interagir com as pessoas quando está passeando, mas ela tem suas peculiaridades”, afirma.

Além de precisar se adaptar à nova condição da pequena Helena, o peso do lado profissional e questões familiares desgastaram profundamente a saúde mental quanto às relações interpessoais de Maria Fernanda. Essa carga emocional a afastou devido a indícios de depressão.

De acordo com a mãe, a filha está se desenvolvendo a passos largos. “Antes ela não falava, apenas apontava e chorava muito. Hoje, ela conta histórias com nexo, sabe diferenciar a realidade do desenho animado, porém, ainda existem alguns fonemas que não consegue pronunciar”, relata.

“Ela tem cinco anos e vive na sociedade. A Helena tem um interesse restrito, sensibilidade sonora, mas é muito curiosa e as terapias estão ajudando ela a se desenvolver rapidamente. Meu papel como mãe é conseguir inserir um ser humano apto a conviver na sociedade, e ela está mostrando grandes evoluções”, diz.

Para Maria Fernanda, o sentimento que prevalece é de alívio e felicidade. “Esse processo marca a vitória da Helena, agora eu consigo trabalhar e acompanhá-la durante as terapias e trabalhar sem problemas, sem causar danos, seguindo a lei”, finaliza.

Antes, em 4 de maio de 2022, outro caso semelhante, onde a Defensoria Pública Geral do Estado do Ceará (DPCE) conseguiu duas importantes decisões para famílias de crianças com Transtorno do Espectro Autista (TEA) residentes em Sobral e em Boa Viagem. Devido à necessidade de acompanhamento às terapias e consultas médicas, as mães, servidoras públicas municipais, acionaram o Poder Judiciário para terem redução da carga horária de trabalho em 50% sem prejuízo de sua remuneração.

O juiz da 2a Vara Cível de Sobral, Antônio Carneiro Roberto, concedeu a tutela de urgência em favor do pedido proposto pela Defensoria. O defensor David Gomes Pontes foi o responsável pela ação inicial. De acordo com ele, a Lei 13.370/2016 concedeu aos servidores públicos federais o direito à redução do horário de trabalho sem redução dos vencimentos. Isso caso possuam cônjuge, filhos ou dependentes com deficiência. Apesar de a lei falar em redução para servidores públicos federais, esse mesmo direito se estende a servidores estaduais e municipais. Muitos estados e municípios já reconheceram o direito através de leis próprias, mas, para quem não tem previsão legal, a legislação federal pode ser utilizada por analogia.

“Essa decisão representa uma relevante conquista em prol não só dessa família, mas para outras que passam pela mesma situação. O Brasil é signatário de uma Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência que assegura a promoção dos Estados garantindo os esforços necessários para o pleno exercício dos direitos humanos e liberdades das pessoas com deficiência. Ela só vai poder ter o seu pleno desenvolvimento se tiver o apoio de seus familiares para que possam levá-la aos tratamentos e dedicar o tempo necessário e o Estado, no caso o Executivo Municipal, precisa contribuir com isso e essa contribuição vem por meio da redução da carga horária dessa mãe.

Transtorno afeta uma em cada 100 crianças

No Brasil, pelo menos 2 milhões de crianças apresentam transtorno de espectro autista (TEA) ou algum tipo de distúrbio neuropsicológico. A escala mundial, de acordo com dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), é de que uma em cada 100 crianças tenham TEA, totalizando cerca de 70 milhões de indivíduos.

De acordo com estudo publicado pelo JAMA Psychiatry, a maioria dos casos de autismo (97% a 99%) tem causa genética, sendo 81% hereditários. Como Helena é o primeiro caso confirmado de TEA na família, houve uma investigação para detectar algum traço do espectro entre os familiares, o que não foi encontrado.

A psicóloga Simone Gordiano define a primeira infância como um período de constante construção. Ela defende a ideia de não adotar um diagnóstico “fechado”, ou seja, definitivo para detectar o autismo – devido a permeabilidade e neuroplasticidade inseridas na fase de desenvolvimento da vida da criança.

Gordiano pontua a importância da chamada hipótese diagnóstica (hd), levantamento de sinais que indiquem a existência de falhas no desenvolvimento neurológico. De acordo com a psicóloga, a prática é comum entre os médicos e pediatras. “Do ponto de vista terapêutico, é muito mais interessante você localizar os sinais e intervir, ao contrário de apenas diagnosticar definitivamente um quadro nessa primeira infância”, afirma.

Na opinião da psicóloga, ao levantar sinais de riscos e impasses na constituição psíquica do bebê ou da criança é possível confirmar o direito do responsável de se ausentar do trabalho para acompanhá-los nos tratamentos sem existir qualquer tipo de prejuízo. “A prática do diagnóstico fechado entra em conflito com o desenvolvimento humano. Cada sujeito, mesmo inserido dentro do espectro, vai funcionar de forma exclusiva”, sinaliza.

DIRETO DA REDAÇÃO

error: Conteúdo protegido por direitos autorais.