Leis orgânicas que serão propostas para polícias miram independência das forças, mas podem minar o controle sobre elas

Qual é a polícia que queremos? Entre os assuntos paralisados no Poder Legislativo pelos esforços em torno da pandemia de coronavírus, mas que estão na fila para ser debatidos, está a criação de leis orgânicas para as forças policiais brasileiras. Essas leis estão previstas na Constituição e são uma reivindicação de décadas tanto de policiais quanto de estudiosos da segurança pública, mas entram no debate público em um momento de forte polarização política, que periga transformar a tramitação em uma queda de braço para decidir quem vai controlar as corporações.

Detalhes de textos que estão sendo preparados para votação na Câmara em 2021 foram revelados pelo jornal O Estado de São Paulo nesta última semana, e esquentaram o debate público, por trazerem propostas que, com a justificativa de blindar as corporações de um uso irresponsável e politiqueiro por governos estaduais, tiram parte do controle que os governadores têm sobre as forças e o transferem aos próprios policiais.

Entre as propostas que estão sendo formuladas pelo deputado federal Capitão Augusto (PL-SP), que preside a bancada da Segurança no Congresso, está a criação de mandatos de dois anos para comandantes da Polícia Militar e a limitação das possibilidades de nomeação pelos governadores a escolhidos pela categoria em uma eleição interna para a formação de lista tríplice.

Para o pesquisador Renato Sérgio de Lima, que preside o Fórum Brasileiro de Segurança Pública e dá aulas na FGV em São Paulo, uma reforma nas leis que regem as polícias é necessária para melhorar a eficiência das forças e garantir que elas sigam protocolos mais claros, além de poderem ser submetidas a controles externos. Ele se preocupa, porém, com as ideias apresentadas até agora, que considera “muito mais peças corporativistas de garantia de salvaguardas para as instituições contra os políticos do que propostas de governança dessas instituições de força”, como colocou em entrevista por telefone.

Lima avalia que, apesar de estarem sendo discutidas no Legislativo, as propostas tramitam sob o peso de um presidente da República que tem interesse em cooptar instituições atualmente controladas pela autoridade direta dos governadores.

“A demanda dos policiais é legítima e precisa ser considerada. Não é saudável ter governadores e seus apadrinhados políticos se metendo no dia a dia das forças, indicando comandantes de unidades, de bairros. O problema é que as propostas que tentam se blindar de uma atuação política e fisiológica dos governadores pode acabar concentrando esse poder em torno de um líder autoritário que coloque essa autonomia a serviço de seu projeto”, analisa ele, alertando que esse líder não é necessariamente o presidente Jair Bolsonaro.

“Independe de ser de direita. Na Venezuela aconteceu o mesmo, com a presidência buscando o controle das forças policiais. Quando você dá ferramentas para um líder autoritário, ele tem a chance de cooptar a instituição”, afirma o especialista.

Essa possibilidade de cooptação das polícias estaduais pelo governo central, ainda segundo Renato Lima, foi aberta pela Constituição de 1988, que delegou competência exclusiva do presidente da República para propor mudanças nas estruturas das forças de segurança. Os projetos que o Capitão Augusto prepara são propostas de substitutivos a um projeto de lei federal que tramita desde 2001. “Significa que, apesar de estar sendo produzido fora do governo, o texto precisa do presidente. E ele pode falar: faço, mas só se for do meu jeito. A legislação concentra poder demais nas mãos da presidência da República para propor essa reforma policial.”

Aperfeiçoar

O professor Renato Lima tem se esforçado para estimular um debate que leve a um aperfeiçoamento dos textos preparados pelo Capitão Augusto quando eles realmente tramitarem no Congresso. “Deixar a polícia do jeito que está é extremamente ruim, e reproduz os problemas estruturais que nós temos”, afirma ele, que acredita que o modelo ideal evitar que os políticos influenciem a parte operacional do trabalho policial.

“Quem decide como fazer policiamento deve ser quem estudou e passou em concurso para isso, mas quem determina o que a polícia faz não pode ser ela, precisa ser a autoridade eleita, não pode ser a própria polícia”, opina.

O risco de uma autonomia exagerada para as polícias, na opinião de Lima, é que elas passem a formular as políticas públicas. “A PM, principalmente, já tem um poder de agenda muito grande sobre os clientes dos outros poderes, dos outros órgãos de Estado. Através dos flagrantes, elas vão é que vão determinar o maior número de registros e situações que vão ser analisados pela Polícia Civil, pelo MP, pelo Judiciário… Ela pode decidir que o tráfico de drogas seja prioridade, ou que seja o homicídio”, avalia o especialista. “Se tenho mecanismos frágeis de controle e omissão da União, a polícia toma decisões sozinha. Isso não é saudável numa democracia”, conclui Renato Sérgio Lima.

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